segunda-feira, 15 de julho de 2013


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GOIN' BLIND
Parkour - Lisboa: 12 Apr - 26 Apr

Goin' Blind @ South as a State of Mind - Arts and Culture Publication 


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GOIN' BLIND

O trabalho recente de João Marçal apresenta-nos uma superfície de abstracção, no entanto estas composições constituem exercícios de memória que com frequência fazem referência a situações simples do quotidiano. Estas situações, que muitas vezes se traduzem ou se inscrevem através de imagens, vão ecoando, insistindo, ampliando a sua importância, tecendo uma complexa teia de referências e sinapses. A certa altura, estas ideias transformam-se em pequenas obsessões que exigem ser resolvidas de alguma forma. Segundo o artista, normalmente, este processo arrasta-se durante muito tempo, por vezes anos. Por outro lado, com a passagem do tempo, coisas há que seguem um caminho inverso, acabando por perder importância, nunca sendo concretizadas.

Goin’ Blind, é simultaneamente o título da instalação e da exposição que o artista apresentará no Parkour. A nova série de pinturas que constitui a instalação, é representativa do método de trabalho de João Marçal. Mais uma vez, parte de uma trivialidade que ganha autonomia, que se emancipa, dando origem, aqui, a uma sequência de vinte e quatro pinturas abstractas sobre papel, pensadas especificamente para aquele espaço. O título segue uma estratégia já usada por Marçal noutras exposições, tomando emprestado o nome de uma música que durante um longo período de tempo persiste na sua cabeça, “Goin’ Blind” (1993) de Melvins.
Estes trabalhos constroem-se a partir do fascínio pela possibilidade de avançar em caminhos diametralmente opostos: dentro do território do formalismo abstracto e, simultaneamente, no sentido de uma referência concreta. Os pedaços de cartão colorido que dão origem a esta série, constituem uma espécie de acidentes gráficos, paralelos ao processo industrial de concepção de uma embalagem, conservando em si um princípio de aleatoriedade. Esta sequência, em que uma forma geométrica se repete em diferentes combinações de cores, remete-nos para uma marcação da passagem do tempo. A forma replica-se e modifica-se, criando um léxico que por vezes é interrompido, aniquilando a sua lógica aparentemente coerente.

“Este trabalho começou há cerca de três anos (2010/11). Costumava fumar sempre no mesmo sítio, a varanda nas traseiras da minha casa, na Rua Miguel Bombarda. Todas a vezes que fumava um cigarro (a acção repetia-se naturalmente), olhava para um pequeno pedaço de cartão pousado do outro lado varanda, sobre um telhado. Durante muito tempo, encontrei-me todos os dias com aquele fragmento, do qual desconhecia por completo a origem. Era azul com uma mancha branca e um círculo amarelo, e por isso, semelhava-se a um pequeno céu inscrito numa forma geométrica intrigante, que parecia a um laço ou a uma espécie de ampulheta estilizada. Um dia decidi apanhar este pedaço de cartão, com a ajuda de uma pau de vassoura e fixei-o no painel de cortiça do meu escritório. A minha ideia inicial era poder fazer uma shaped-canvas que tentasse reproduzir a forma daquele pedaço de cartão, o que iria resultar numa espécie de representação do céu completamente absurda.
Meses mais tarde, a minha namorada acabou por descobrir acidentalmente a origem daquela forma, que na verdade, era um fragmento da parte inferior da cartonagem de um pack de iogurtes líquidos. A partir daí comecei a “vandalizar” embalagens de iogurtes no supermercado e a coleccionar estes pedaços de cartão sem nenhum objectivo claro, até ao dia em que alinhei alguns destes elementos lado a lado, em cima de uma mesa. A sequência remetia naturalmente para os conceitos de repetição e diferença, que me interessam particularmente e que são, de certa forma, intrínsecos ao meu trabalho.
A possibilidade de criar um paralelismo com algumas séries de pinturas sobre a alumínio de Blinky Palermo (nomeadamente com séries como: Times of the Day, Coney Island ou To the People of New York City), terá sido também um factor determinante, talvez o motivo que definitivamente me faria avançar e concretizar a série Goin’ Blind.” João Marçal


Abril, 2014
T. Spírola


ING / EN

João Marçal's recent work presents an abstract surface, nevertheless, these compositions constitute memory exercises that frequently refer to simple actions and experiences from daily life. These situations are often translated or inscribed through images, insisting and reverberating, growing up its importance, while building a complex net of references and synapses. At a certain point, these ideas become obsessions that somehow demand to be solved. In the artist words, usually, this process takes a long time, sometimes years. On the other hand, there are ideas that follow the opposite course, losing relevance and never getting the chance to be executed.


Goin’ Blind, is simultaneously the title of the installation and the exhibition that João Marçal presents at Parkour. The new series of paintings that constitute the installation are representative of his usual method of work. Once again, it begins with a triviality that gets emancipated and becomes autonomous to gain the shape of a sequence of twenty-four paintings on paper, developed specifically for that space. The title follows a strategy already used by Marçal in other exhibitions, borrowing the name of a song from Melvins, that during a long time persisted in his head, “Goin’ Blind” (1993).

These works come from a fascination of the possibility of taking completely different paths: in the territory of abstract formalism and, simultaneously, in the direction of concrete references. The coloured cardboard pieces that originate this series constitute a sort of graphic accidents, a residual product of the industrial process of making a package, concentrating in it a random dimension. This sequence, in which a geometric shape is repeated through different colour combinations, evokes the possibility of measuring the time, as it clearly imposes a rhythm. The shape repeats itself, creating a lexicon that sometimes is interrupted, annihilating its apparent cohesive logic.

“This work started about three years ago (2010/11). I used to smoke always in the same place, at the balcony at the back of my house, on Miguel Bombarda Street. Every time I went smoking I would stare at a small cardboard piece lying down on the roof in front of the balcony. For a long time, I would meet that element which origin I ignored, but really intrigued me. It was blue with a white brushstroke and a yellow circle, resembling the sky, confined to the intriguing geometric shape, which looked like a bow tie or a stylised hourglass. One day I decided to pick up that cardboard piece, using the wood broomstick and pinned it against cork board of my office. My original idea was to make a shaped-canvas reproducing that element, which would result into a strange representation of the sky.
Months later, my girlfriend found out by chance that the small piece of cardboard was part of a yoghurt package. From then on, I started to collect those colourful pieces, ripping them off the packages, at the supermarket. By then I didn’t knew yet what I was going to do with them. When finally I put the pieces together on the table, it started to become clear that I would have to paint them. The sequence they compose, evokes easily concepts as repetition and difference that interest me and constantly appear beneath my work.
The possibility of creating a parallel with some of Blinky Palermo's paintings (specially the series: 'Times of the Day, Coney Island' or 'To the People of New York City'), also increased my interest, becoming the decisive factor to go for it and producing the installation Goin’ Blind." João Marçal


April, 2014
T. Spírola
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WE’RE ALL ALONE
Galeria Adhoc: 14 de Março a 1 de Junho

O trabalho de João Marçal incorpora uma ampla reflexão sobre a Pintura, desde as suas especificidades materiais até ao percurso dramático ao longo da sua história. Porém, a sua abordagem à pintura abstracta está nos antípodas de qualquer objectivo essencialista, sendo um dos seus principais pontos de interesse, o lado mais paradoxal e divergente do paradigma da pintura abstracta modernista. Nas pinturas de Marçal, o caminho da abstracção desenvolve uma relação simbiótica com territórios que supostamente lhe são contraditórios: o domínio da imagem, da representação e da narrativa. Deste modo, a sua prática assume simultaneamente um compromisso para com a herança da pintura e o cumprir nostálgico do tempo, recorrendo frequentemente a referentes e memórias autobiográficas.
Nas suas últimas séries, João Marçal faz uso de padrões para preencher toda a superfície da tela, como estratégia de desierarquização da composição. Contudo, os elementos repetidos e as distâncias entre eles, nunca obedecem totalmente a um rigor frio e geométrico, há sempre um lado expressivo e aleatório que transparece e que diferencia cada marca de tinta deixada. A impossibilidade de reproduzir cada gesto de forma exacta, cria uma tensão constante entre a falha e a precisão da composição repetitiva, cada pincelada revela algo diferente: a pressão exercida, a sua transparência, a sua largura, a definição das suas linhas.
Os padrões reinterpretados em cada uma das pinturas, são encontrados no quotidiano, tendo origens distintas e estando sempre ligados a uma determinada experiência passada. Deste modo, o acto de pintar converte-se num constante exercício de reinscrição de memória para o próprio artista.
A exposição We’re All Alone, apresentada na Galeria Adhoc, pede o seu título emprestado à última música do álbum Above (1995), o único disco de originais da banda grunge Mad Season. We’re All Alone é um tema instrumentalmente calmo e persistente, cuja letra (de Layne Staley) se resume à repetição pontual de um único verso “We’re all alone”. Criando uma analogia com o que acontece na superfície destas pinturas, esta última lamentação introspectiva, que põe termo a uma catarse musical de dez temas altamente nostálgicos e depressivos, parece poder ecoar até ao infinito, como se de um padrão se tratasse.


Março, 2013
T. Spírola

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D.ª MARIA AMÉLIA 
Galeria Nuno Centeno: 10 Março a 10 Abril, 2012 

Em D.ª Maria Amélia, João Marçal apresenta-nos um conjunto de trabalhos realizados entre 2011 e 2012.

O artista parte da apropriação e reconstrução de vários padrões oriundos da sua experiência quotidiana, para realizar um conjunto de pinturas abstractas que se dividem em duas séries: uma de referências autobiográficas e outra inspirada na figura de D.ª Maria Amélia, servindo esta última de título à exposição. Com origem num enredo de referências dispersas, uma vez mais, os trabalhos remetem para a complexidade da experiência do tempo e a omnipresença das ideias de princípio e fim, de passado e futuro; problemática esta, que se pretende extensível à própria existência e percurso dramático da Pintura. 
D.ª Maria Amélia, define-se aqui como o nome de uma personagem semi-fictícia e metafórica, inspirada em duas mulheres que, apesar de terem tido vidas diametralmente opostas, partilham de uma relação paradigmática com a morte, que lhes mudou em absoluto os destinos. 
D.ª Maria Amélia de Orleães, a última rainha de Portugal, após assistir à morte de todos os seus familiares directos e à da queda da monarquia em Portugal em 1910, viu-se obrigada a passar grande parte da sua vida no exílio, tornando-se a sua condição de existência numa espécie de longo luto, depois do fim. Foi também o último membro da família real portuguesa a morrer, em 1951 com oitenta e seis anos. Maria Amélia, é também o nome da protagonista de uma notícia de 2009, do jornal Mirante (regional do Ribatejo), que dava conta de uma senhora idosa que se tentara suicidar na linha de comboio, entre o Setil e Vendas Novas. Felizmente, Maria Amélia não se deitou na linha da maneira mais eficaz, e o comboio passou-lhe por cima sem lhe provocar qualquer ferimento. Esta experiência de proximidade com a morte acabou por ter um efeito contraditório e revitalizador, pois a senhora continua viva e feliz, sem quaisquer sinais da depressão de que sofrera tempos antes.  
Março, 2012
T. Spírola

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ABSTRACT
MCO - Arte Contemporânea: 20 de Junho a 22 de Julho, 2009

"A abstracção do real", por Óscar Faria (Jornal Público/Ípsilon). Ler aqui

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ABSTRACT
MCO - Arte Contemporânea

A exposição “Abstract” que estará patente na galeria MCO a partir de 19 de Junho, apresenta uma série de pinturas a acrílico sobre tela, todas elas de formato panorâmico. O título da exposição “Abstract”, pretende jogar com o duplo sentindo que esta palavra pode ter na língua inglesa. Se por um lado, a ideia de “abstracto” no contexto da arte é importante para definir e identificar estas pinturas, por outro, a leitura de “abstract” como sumário, ou resumo de algo com mais desenvolvimento ou complexidade, é igualmente necessária para o conceito desta exposição.
Estes quadros, na sua aparência, estabelecem uma estreita afinidade com os parâmetros do formalismo abstracto americano dos anos 60, do mesmo modo que se podem estender a uma série de problemas de ordem económica e social, em particular do contexto português actual. As faixas de cor sólida que percorrem todas as paredes da galeria, partilham a sua autonomia enquanto formas (figuras) da pintura, com uma ténue sugestão de representação figurativa, uma espécie de significado subliminar. De certo modo, torna-se quase impossível não associar estes longos rectângulos horizontais, a uma paisagem urbana que faz parte do quotidiano do mais comum dos cidadãos portugueses. Esta instalação (e também cada peça em particular) tem também por isso um carácter de site-specific, uma vez que o reconhecimento dos vários níveis do trabalho pressupõe uma memória colectiva, uma familiaridade com certas formas e combinações de cores que, neste caso, marcam a sua presença nas fachadas de agências bancárias e nos mais comuns transportes públicos do território português.
Resumindo, o múltiplo sentido de “abstract” sublinha toda a ambivalência que define a génese deste trabalho. Apesar de uma forte ligação aos ícones da pintura abstracta formalista, neste caso particular às obras panorâmicas do americano Keneth Noland, aqui pretende-se contrariar o mito de uma abstracção totalmente autónoma e pura, alheada de todo um contexto exterior, indiferente a qualquer interpretação. Nestas obras, a abstracção não é sinónimo de destruição de toda a significação, estas formas pretendem-se prenhes de significados que se devem desdobrar infinitamente, sempre indissociáveis da subjectividade das interpretações, das experiências individuais. A instalação “Abstract” apresenta-nos um jogo de tensões entre autonomia e interdependência; estas pinturas não são objectos estáticos e contemplativos, pois dão privilégio a uma relação activa com o espaço e tempo, relação esta que estende ao exterior da galeria e à experiência do quotidiano, estão até abertas a possíveis narrativas.
Ao apropriar-se de um universo formal oriundo dos placards luminosos dos mais democráticos bancos portugueses ou do exterior de transportes públicos como o metro, o comboio e o autocarro; Abstract” age de modo subliminar como uma síntese de acções, deslocações, problemas financeiros pessoais ou crises económicas generalizadas; é uma abstracção sempre à mercê das mais diversas contingências.




Junho, 2009
T. Spírola

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MINI CHALENCHE
CCB - Miguel Bombarda (Salão Nobre): 17 de Novembro de 2007

A Exposição Mini Challenge reuniu uma série de trabalhos de dois artistas,  João Marçal e Luís Espinheira, que têm em comum explorar, mais ou menos directamente, os limites do território da pintura.
O espaço da exposição surgiu da oportunidade pontual, para ocupar temporariamente uma loja, ainda vazia na altura, do Centro Comercial Miguel Bombarda (a famosa "rua das galerias de arte" do Porto). 
A cerveja é o mais banal e acessível dos néctares da vida boémia, também no universo das artes esta bebida consegue, muitas vezes, mais protagonismo do que muitas obras de arte. Falo aqui, principalmente, sobre um circuito de espaços expositivos de funcionamento nocturno que acabavam por chamar menos pelas exposições, do que pelo belo pretexto de beber uma cerveja. Mesmo assim, tudo isto acabava por ter aspectos extremamente positivos, as pessoas juntavam-se, desinibiam-se, e falavam muito de arte.
Mini-Challenge tenta, de modo irónico, inverter esta situação. Aqui, o principal pretexto do evento é uma festa da cerveja que confronta as duas principais marcas de cerveja do país, Sagres e Super Bock, como suplemento estão expostas algumas obras de arte.
O cartaz da exposição parte de uma fotomontagem de João Marçal, realizada a partir de uma reprodução da peça de Jasper Johns "Ballantine Beers", que protagonizou em 1960 um interessante episódio entre arte e cerveja. Johns, elabora esta peça reagindo às palavras depreciativas de William de Kooning, quando este afirmou que o galerista Leo Castelli venderia qualquer coisa como arte, até latas de cerveja.


Novembro, 2007
T. Spírola 

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HENRIETTE BINGER BARTHES
MCO - Arte Contemporânea: 15 de Setembro a 18 de Outubro de 2006



A sequência de trabalho de João Marçal, se não está dentro da Fotografia, insiste pressurosamente em sitiá-la através do assédio aos seus acessórios, marcas e signos. Tudo o que não for fotografia, mas seja da fotografia, poderá ser um elemento valioso na condução de uma pesquisa sobre um corpo e uma natureza desta técnica de particularização do real. A abrir ao público no próximo dia quinze de Setembro, a exposição “Henriette Binger Barthes”, a partir de pintura e vídeo produzidos pelo autor invoca o livro “A Câmara Clara”, de Roland Barthes que neste ensaio recorre continuamente à imagem da sua mãe e descreve uma fotografia que a representa, fotografia que resta sempre invisível e inacessível aos olhos do leitor. É precisamente a partir da inacessibilidade a uma figuração citada que se constrói e define, na produção de João Marçal, o comentário irónico e a pesquisa teórica sobre o mais banal (e democrático) dos meios de uma representação contemporânea tanto do real como das identidades. Na exposição na galeria MCO, no Porto, o universo e o discurso da fotografia são absorvidos em digestão lenta por um meio que tem a seu favor o circunspecto. Na formalidade da pintura, a fotografia fixa-se como sujeito Universal, afastando-se da particularidade de cada uma das suas imagens. Para fazer este desvio, e forçar coisas tão distintas a habitar a mesma superfície, é necessário pontuarmo-nos pelo registo do humor.

Setembro, 2006
José Roseira

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CÓPIAS E SIMULACROS

Texto do catálogo da exposição P.S. I love Hue, na Galeria 24b, patente de 30 de Junho a 8 de Setembro de 2005

 João Marçal (Santarém, 1980) tem vindo a desenvolver desde 2001 um corpo de trabalho, no campo da pintura, centrado em torno da problemática da representação fotográfica. O jovem pintor apropria-se de logótipos de marcas conhecidas do merchandising fotográfico para questionar o domínio da fotografia na cultura visual contemporânea. A alusão à imagem fotográfica é feita de modo indirecto, sendo esta, no entanto, centralizadora do discurso do artista. Se o resultado final do trabalho de Marçal pode ser definido como pintura, as problemáticas que aborda, a simbologia e cultura que incorpora, pertencem ao domínio da pintura.

O nascimento da fotografia criou um impacto profundo na estética da pintura. Se a história da arte até meados do século XIX era centrada na ideia da criação de uma ilusão da realidade, na mimessis do real, com a invenção da fotografia, este pressuposto é posto em causa. A fotografia captura de uma forma mais económica, célere e fiel essa mesma realidade. A mecanização deste processo vai pôr em causa os pilares temáticos da pintura. Anuncia-se a morte da pintura... A pintura reage. Encontra uma forma de se recriar e reafirmar. Os pintores deixam de se centrar no relato mimético e objectivo do mundo exterior, para se centrarem na subjectividade de si próprios. Surge, neste momento, a principal cisão que irá separar a pintura da fotografia: se a primeira apresenta um olhar subjectivo e ficcionado a segunda assenta na objectividade e na verdade. O que a segunda metade do século XX faz à fotografia e à pintura, é interrogar essas qualidades inerentes.

A investigação de João Marçal situa-se exactamente no epicentro dessa divergência. Um dos seus primeiros trabalhos [Sem título (parte de trás de papel fotográfico), 2001] recria, numa tela, o verso de uma fotografia. Esta obra, inscrita no âmbito do hiper-realismo, é já denominadora de uma das preocupações centrais do seu trabalho: a contestação do imperialismo da verdade fotográfica. O que é que está por detrás de uma fotografia? O que é que vemos quando olhamos uma fotografia, e o que que fica invisível? Ocultas ficam as 'costas' das imagem: a impossibilidade física de simultaneamente ver frente e verso, mas também tudo que nos é negado. O exercício que o artista desenvolve, de questionar a visão do mundo como transmitida pela imagem fotográfica, apresenta-se como uma crítica engenhosa ao automatismo imagético cuja veracidade é frequentemente, duvidosa.

O segundo momento da sua investigação concretiza-se na sua primeira exposição individual. "Oll Korrect" (PêSSEGOpráSEMANA, Porto, 2003). O título da mostra é um gracejo com a expressão mundialmente utilizada: OK, que provém das iniciais de um erro ortográfico na frase "all correct", escrita "oll korrect". Esta expressão nasce de um equívoco, um erro, mas com a sua globalização perde a sua origem, a sua autenticidade, para ganhar uma nova dimensão. A verdade é apresentada, mais uma vez, como algo construído. Nesta instalação, Marçal expõe quatro telas iguais com ok escrito e dispostas em 4 posições diferentes. A repetição da mesma imagem tornar-se-á uma estratégia recorrente no percurso artístico de Marçal, aludindo ao facto de a mesma imagem poder ter diversas leituras.

Este trabalho inicia uma pesquisa em torno das imagens corporativas e das simbologias dos logótipos das marcas de material fotográfico. O design identitário impera actualmente como uma preocupação central destas gigantes empresas. Os seus logótipos excedem simples traduções gráficas para acarretarem em si a própria ideologia da companhia. À imagem gráfica são sobrepostas camadas de simbologia e significação. Cada nova imagem, cada nova utilização da marca, adiciona novo significado.

Assim, uma cópia é sempre mais do que uma duplicação. A sucessiva repetição da mesma imagem permite a emergência do desvio, da diferença. As imagens perdem o estatuto de cópias para passarem a constituir-se como simulacros. Afirma Gilles Deleuze que "o conceito de simulacro envolve uma discussão sobre igualdade e diferença, semelhança e disparidade, representação e criação." É exactamente esta discussão que Marçal quer incitar (particularmente com a sua exposição "Repetição e Diferença", Salão Olímpico, 2004) forçando o espectador a sair da sua passividade e a entrar num diálogo com a obra e a sua simbologia.

A fotografia, para além do seu estatuto artístico, é actualmente um bem comercial de consumo massivo. Essa perspectiva da fotografia como bem global de consumo é abordado no projecto "MarchFilms", no qual João Marçal cria uma marca imaginária de produtos fotográficos e encomenda a conjunto de designers a criação de uma identidade para a marcae seus produtos. Para poder ser-se imperador neste novo império, exerce-se o domínio não sobre súbditos, mas sobre mercados, circuitos de produção e distribuição de bens. E nesta nova guerra entre os vários imperadores, o poder sedutor da imagem é uma das armas mas poderosas.

A ideia do poder da imagem das marcas, ou seja da iconografia contemporânea, é explorada nas mais recentes pinturas de Marçal agora expostas na Galeria 24b. Numa imagem criada para ilustrar o convite da exposição, Marçal apresenta duas caixas de artigos fotográficos que se assemelham a naves voadoras a sobrevoar um novo território, com uma legenda: ps. I love hue. Marçal apropria-se do título de uma canção de Kid 606, ps. I love you, para lançar o mote da mostra: referências à cultura contemporânea e à história da Arte recente e a citação, manipulação e contaminação que Marçal faz destas no âmago das suas preocupações estéticas e teóricas, averiguando novos territórios para a criação artística.

Nestas pinturas, a participação do espectador é novamente solicitada. O que lhe é pedido é o exercício, ou teste, de reconhecimento das marcas evocadas em cada uma das telas. Como um jogo, o espectador é convidado a contemplar o puzzle, e só o poderá fazer se possuir os conhecimentos necessários. Se umas imagens são de fácil reconhecimento, com Code, outras necessitam de uma cultura mais especializada. Este processo (jogo) de autenticação converte-se num momento central de encontro do espectador com a obra.

Se a estética e a temática de Marçal são produto das radicalizações Pop, a nível formal o artista descontextualiza estas referências, transformando-as em imagens que se aproximam do abstraccionismo geométrico manipulado digitalmente. As suas obras situam-se na ambiguidade entre o uso objectivo da forma e da cor com a subjectividade das citações que as imagens referenciam.

Poderão símbolos culturais, densos conceptualmente, ser alvo de desmaterialização ideológica e transformarem-se em meros signos formais? Poder-se-á apagar a subjectividade de iconografias de massa, ou será uma imagem sempre constituída por camadas significativas que superam a simples análise formal?

João Marçal, numa estratégia simultaneamente crítica e inquisitiva, explora a cultura visual contemporânea: a sua construção, difusão massificada e a reacção que provoca em cada espectador perante o seu domínio.


Filipa Oliveira


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REPETIÇÃO E DIFERENÇA
Salão Olímpico: 9 de Janeiro de 2004


Nas ciências exactas, tais como a matemática ou a estatística a repetição é o origina o padrão; essa consolidação de dados em posições que pautam pela facilidade de reconhecimento; qualquer diferença origina o desvio, daí existir mecanismos normalizadores tais como o desvio-padrão, pois procura-se uma verdade, o erro é a diferença: valores que fogem ao padrão.
A repetição na narrativa é o repisar, o voltar a dizer, que quando não é uma justa lembrança ganha os contornos de ruído ou de erro, aqui a diferença é que parece ser o “padrão normalizador”. Como que dizendo, para evoluir num qualquer discurso não nos devemos estar constantemente a repetir.
Só nestes dois pequenos exemplos podemos de facto observar quanto de repetição e de diferença necessitamos todos nós para achar o nosso grau de normalidade... jogo de equilíbrio entre o nosso repetitivo quotidiano que sejamos francos é nos útil assim e as pequenas fugas a ele que são necessárias.
Na obra de João Marçal a repetição poderá ser entendida como a estrutura e por haver uma diferença podemos conceber o movimento. Uma espécie de processo reflectivo, para formas cúbicas de um logótipo conhecido que nunca foi processo pois todos eles estão expostos como forma. Aqui novas questões se poderão levantar: a repetição realça a diferença? Ou é precisamente o contrário? É nesta complexidade discursiva que cubos agfa “posam” numa ordem de relações e possibilidades formativas, executivas e interpretativas, mas sempre dialogantes.


Janeiro, 2005
Rui Ribeiro (co-fundador do Salão Olímpico)

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